quinta-feira, 27 de setembro de 2012

CяØиicǺ - A voz

   O telefone tocou. A mãe, o pai, o irmão não atenderam e no terceiro toque Débora levantou-se.
        -Alô.
        -Helena?
        -Não, não é Helena.
        -Helena não está?
        -Aqui não tem Helena.
   Ficou esperando para desligar. O homem do outro lado da linha não se resolvia. Provavelmente telefonava com frequência para uma Helena e o engano parecia telo paralisado.
        -Será que disquei errado? Isso nunca me aconteceu.
   Alguma coisa havia despertado Débora, interrompendo a letargia do jantar, e ela não sabia o que era.
        -Nunca? Vc deve ser a única pessoa que nunca discou errado.
        -Quer dizer: nunca ao ligar para esse numero.
        -Mas vc nunca ligou para o meu numero.
   Débora estava de repente muito esperta para ele. 
        -Quer dizer: nunca me enganei ao ligar para o numero que pretendia ligar.
        -E vc sabe para qual numero ligou?
        -Não. 
        -Mas sabe para qual ia ligar.
        -Claro.
        -Então vc não está perdido. 
        -Não, não estou.
        -Tudo de bom, então. Boa noite.
        -Boa noite. Qual é seu nome?
        -Débora.
        -Boa noite, Débora.
   Assim que desligou e sentou-se de novo à mesa, Débora foi tomada por uma íntima euforia. Por que estava se sentindo tão bem? Um calorzinho agradável inundou seu corpo e adivinhou que a causa era a voz do homem. Uma voz tão gostosa, lembrou-se, e começou a sentir falta dela. Nos seus quase vinte anos, Débora havia acumulado alguns enganos e desenganos com alguns rapazes. Atualmente estava dando um tempo, esperava em casa que alguma coisa acontecesse. Aconteceu aquela voz. E ela pensou: tomara que ele se engane de novo.
   Logo. logo um engano não a satisfazia como perspectiva. Queria que ele ligasse para falar com ela. Se ele sentiu a mesma coisa que eu, vai ligar pensava, ajudando a mãe a lavar os pratos. Se ele conseguiu se lembrar do meu numero, vai ligar, esperava, estudando direito constitucional para a aula da manhã seguinte. Ele está até tentando todas as combinações possíveis para falar comigo, sonhou, antes de adormecer.
   Após as aulas do dia seguinte não teve cabeça para conversar e planos de porta de faculdade. Correu logo para casa. Nada. Se ele ligar, vai ser na hora do jantar, pensou, e transferiu sua esperança para as oito horas da noite. Tentou recriar a voz na memória. A voz, volumosa, quente, coma a de um barítono, não se elevara nem uma vez. A cadência, calma, gostosa, mesmo quando ela o provocara, indicava paciência, autocontrole. Soava como de adulto, mas jovem. Parecia divertir-se com a petulância dela. Helena foi uma preocupação que Débora deixou pra depois. Quem seria?: noiva, irmã, amiga?
   Oito horas da noite. Nada. Nove. Nada. Quantas combinações seriam necessárias para ele acertar o numero dela novamente? Fazia as contas, ouvido atento na possível, esperada campainha.
   Depois de dois dias de espera, decidiu dar uma ajudazinha ao destino. Quem sabe a sorte... Trancou-se no quarto e ligou seguidamente para números parecidos com o seu, sempre perguntando por Helena. Até que: ''É ela''. É ela! Com o coração na boca, Débora não sabia o que perguntar. A única coisa que poderia perguntar era um absurdo: a senhora conhece um homem que tem a voz bonita e vibra um pouco a língua no ''r''  e diz  ''Helena''  com o primeiro  ''e'' aberto? Do lado de lá Helena insistia em alôs. Nunca se perdoaria se não tentasse.
        -É Débora Gomes que está falando. Eu estou tentando localizar uma pessoa e não sei se a senhora pode me ajudar.
        -Se puder.
        -É que eu vendo enciclopédia. Essa pessoa ligou aqui para casa por engano, procurando por Helena, está entendendo?, e no meio da conversa eu ofereci a obra em condições especiais e ela se interessou. Mas aí a linha caiu e então eu estou tentando localizar a pessoa, ligando para números parecidos com o meu. A senhora pode me ajudar?
        -Como é o nome da pessoa?
        -Aí é que está: não sei. Ele não chegou a me passar os dados. Só sei que ele tem uma voz, assim, 
cheia, bonita, e fala Helena com o  ''e''  meio aberto.
        -Não, não conheço. Só se minha filha conhece. Quer que eu pergunte?
        -Não, obrigada. Eu vou tentar outro numero.
   Nenhuma das outras duas Helenas que ouviram a historia conhecia aquela voz. Débora resolveu descansar, deixar que ele fizesse o resto.
   No fim de uma semana estava cansada de tanta espera. Não deixara um dia de estar em casa todas as tardes e noites. A mãe, a seu pedido, montava guarda pelas manhãs. Na noite do sexto dia tentou novamente ajudar o destino com uns telefonemas, sem sucesso de Helenas. 
   No dia seguinte mudou a tática: saiu à tarde para o shopping, tomou sorvete, riu da sua loucura com uma amiga, telefonou para casa avisando que iam ao cinema, divertiu-se com uma comédia, voltou sentindo-se melhor. Não, a mãe disse, ninguém telefonou, esquece isso. Débora achou mesmo que era melhor, embora ainda não tivesse forças para desistir. Helena seria noiva, namorada dele, talvez até mulher. Absurdo se amarrar nisso, pensou, de novo lúcida. Esquece, esquece, esquece isso.
   Preparava-se para dormir quando o telefone tocou, ela disse alô, perguntaram quem fala, ela disse Débora e ouviu aquela voz maravilhosa dizer: oi Débora, desta vez não é engano!
                                
                                                                                                          ( Ivan Ângelo )      


              

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