Yara estava realmente apertada para ir ao banheiro.
Estacionou seu carro na garagem, abriu a porta e saiu
praguejando contra a vontade insuportável de urinar,
nem se importando em fechar a porta ou desligar o
rádio que guinchava aos acordes alucinados da guitarra
de Jimi Hendrix. Ela e o marido estavam passando alguns
dias em sua casa no lago, que fica em uma região
praticamente desabitada no interior do estado. Nessa
época do ano não havia movimento nenhum por perto,
e ficaria assim por alguns meses, até que chegasse a
época das férias escolares, e era exatamente isso o que
eles estavam procurando quando decidiram passar uns dias
na casa do lago. Eles queriam uma espécie de segunda
lua-de-mel. Ela acabara de voltar do supermercado e achava
que se demorasse mais um segundo para ir ao banheiro não
agüentaria e acabaria urinando nas calças. A porta da sua
casa parecia estar a anos luz de distância e ela correu desajeitada,
apertando as pernas. Se não estivesse tão desesperada para
ir ao banheiro, talvez tivesse notado o detalhe um pouco
inquietante: a porta da entrada não estava trancada. Ao invés
de reparar nisso, ela quase derrubou a porta ao entrar, atravessou
o hall de entrada em direção ao banheiro do andar de baixo,
que ficava depois da cozinha, nos fundos da casa. Parou de
repente porquê escutou um som estranho vindo da cozinha.
Estava parada no corredor, entre a sala de estar e a própria
cozinha, a respiração ofegante, a vontade de urinar cada vez
mais insuportável. Sua calcinha já estava úmida de gotas de
urina que escaparam do seu controle, mas o medo a manteve
paralisada e atenta ao som que ouvia. Era baixo e aterrorizante,
mas era um som que ela conhecia muito bem. Era o som de
faca cortando carne. Ou melhor de faca "destrinchando" carne.
Conhecia esse som muito bem desde os seus 18 anos, porque
seu marido Tony era o açougueiro do bairro onde moravam.
Mas não podia ser ele na cozinha. Há poucas horas ele tinha
saído para pescar no lago, e quando ele saia para pescar,
levando sua embalagem com seis cervejas dentro de um isopor,
ele só voltava ao anoitecer para o jantar. Avançou mais um pouco,
o mais silenciosamente que conseguiu, apertando as pernas
para conter sua vontade de ir ao banheiro, e tentou ver do
lugar onde se encontrava se conseguia avistar quem estava
na cozinha. Encostada no batente da porta, ela se encolheu e
conseguiu ver sem ser vista: era um homem, completamente
estranho. Ele estava de costas para a porta da cozinha, debruçado
sobre a mesa, na frente do que a princípio parecia ser um boi
inteiro nadando em sangue. As paredes, janelas e todos os
eletrodomésticos e demais utensílio da cozinha estavam
encharcados de sangue. O homem se inclinou e enxugou a testa
com a manga do paletó, um gesto peculiar de quem esta suando
e cansado do trabalho duro. O medo que até então estava só
esperando um empurrãozinho para começar a dar sinal de vida
se manifestou, porque agora que ele se inclinou ela pôde ver que,
afinal de contas aquilo na mesa sendo retalhado não era um boi.
Não, não era boi coisa nenhuma e sim uma pessoa, e estava
usando botas de cowboy, muito parecidas com o par que seu marido
tinha, aquele que ela lhe deu de presente no Natal passado e
que ele sempre usava quando ia pescar no lago. Sentiu um líquido
quente escorrer pelas pernas e um alívio repentino na bexiga,
e notou sem muito interesse que finalmente urinara nas calças.
Mas isso não era o mais importante agora. O importante mesmo
era que esse camarada que estava ali na sua cozinha, usando a
faca Gynsu de seu marido cortar carne, fazendo seja lá o que
for com uma pessoa, e por favor meu Deus, que essa pessoa
não seja o Tony, não notasse que ela estava ali, pelo menos
até que ela chegasse ao seu carro na garagem e... Mas no momento
em que ela pensou em se virar cautelosamente e sair, como se
o homem tivesse conseguido ler seus pensamentos, uma voz terrível,
rouca e cadavérica, como se saída da boca de um defunto,
falou calmamente, sem que o homem sequer se virasse ou interrompesse
o que estava fazendo: - Sei que você está aí. Ouvi o barulho do
carro chegando e além disso você esqueceu de desligar o rádio.
Está ouvindo? Gosto dessa música. Lá fora, o rádio de seu carro
continuava tocando música muito alta, só que as guitarras de
Jimmy Handrix agora foram substituídas pelo som dos The Doors
tocando People are Strange. Ele começou a cantarolar a música
e se virar bem devagar... Yara gritou quando viu seu rosto.
Qualquer um gritaria. Ele era totalmente deformado, o rosto
parecia mais uma máscara do dia das Bruxas, com dentes podres
e lábios arreganhados em um sorriso hediondo. Mas o que a fez
gritar não foi a sua deformidade, mas sim o que viu em seus olhos:
loucura e maldade. Seus olhos eram cruéis, e irradiavam um ódio
contido por tudo que fosse vivo. Sua boca estava suja de sangue
e ela notou com crescente horror que ele havia lambido o sangue
que escorria do corpo. Ele veio em sua direção e ela ainda tentou correr,
mas ele agarrou-a pelos cabelos e puxou-a pra si, dando uma
gargalhada terrível. Ela tentou fugir golpeando e chutando a esmo,
mas ele era muito forte, parecia que tinha uma força sobrenatural.
Tentou gritar, mas quando abriu a boca levou uma pancada na cabeça e desmaiou. E mesmo que ela tivesse conseguido gritar, quem a
ouviria? ************** Quando acordou, horas depois, estava
amarrada na cadeira de sua mesa de jantar, totalmente imobilizada
e amordaçada. Sua cabeça não podia se movimentar para nenhum
lado, apenas seus olhos se mexiam e olhavam ao redor, apavorados.
E, coisa estranha, seus cabelos estavam molhados e ela sentia
um desconforto na parte superior da cabeça, bem no centro.
Tentou soltar as mãos. Impossível. Estava em uma posição bastante desconfortável e sem nenhuma chance de se mexer ou se soltar.
Pelo pouco que podia ver, parecia que estava sozinha. Mas depois
notou que não, não estava sozinha. Sim, finalmente pode ter
certeza de que era seu marido quem estava na mesa. E agora o
que ela via na sua frente era o que restou dele, arrumado
cuidadosamente em sua poltrona preferida. O homem, ou seja lá
o que era aquilo, retalhou seu marido inteiro, e depois tentou
colocar tudo no lugar novamente, só que de uma maneira bem
grotesca. A barriga estava toda aberta, expondo os órgãos internos,
mas ela pode notar que faltava boa parte deles. Os braços e parte
das pernas foram arrancados e pregados na parede. As orelhas e
os olhos também foram arrancados e jaziam espalhados pelo chão.
Ele colocou uma peruca loura na cabeça do cadáver, e vestiu uma
saia que ela não reconheceu como sua. Passou batom nos lábios,
imitando um sorriso de palhaço e nas suas mãos tinha um cartaz escrito:
"Água mole em pedra dura, tanto bate até que fura, o pior pecado
é a Luxúria". O desconforto na sua cabeça foi aos poucos ficando
mais intenso. Depois de muito tempo ela percebeu que eram gotas
que caiam na sua cabeça. Talvez algum cano tivesse estourado
bem em cima dela. Depois ela notou que na parte da cabeça
em que caiam os pingos não havia cabelos. Isso era certeza,
porque ela podia sentir as gotas caindo diretamente sobre seu
couro cabeludo e incomodando muito. Horas se passaram. Agora as
gotas que caiam a todo o momento na sua cabeça pareciam ser
feitas de chumbo. Tentando freneticamente se livrar das cordas,
ela cortou os pulsos e se machucou inutilmente, sem conseguir se
mover sequer um milímetro. A dor na cabeça estava ficando
insuportável. Como ela não podia mexer a cabeça, as gotas caiam continuamente e num ritmo bem calmo, sempre e sempre no mesmo lugar... Ping, ping, ping... " Casal encontrado assassinado em casa.
O açougueiro Antônio Marcos Ravel e sua esposa Yara Felix Ravel
foram encontrados mortos depois de setenta e quatro dias, na
sala de estar de sua casa de veraneio. Os corpos foram descobertos
pelo vizinho, que veio passar as férias com a família e notando
o cheiro que saía da casa, resolveu chamar a polícia. O Sr. Ravel
foi encontrado na sala de estar, todo mutilado e retalhado, usando
uma peruca e uma saia, maquiado de forma grotesca. Em seu
corpo não restava uma gota de sangue. Sua esposa estava amarrada
na cadeira da mesa de jantar, imobilizada, o assassino perfurou
um cano bem acima da cabeça da vítima, fazendo com que gotas
de água que caiam continuamente no mesmo local em sua cabeça,
perfurassem seu crânio, levando a mesma a morte após vários
dias de sofrimento e agonia. Ambos os corpos estavam em avançado
estado de decomposição. O casal não tinha inimigos e eram
pessoas honestas e trabalhadoras. Nada foi roubado e a polícia
não tem pistas do assassino e nem do motivo de um crime tão brutal."
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